segunda-feira, 7 de outubro de 2013

SEMEANDO O AMOR ENTRE O PAI E A MÃE, EU NASCI.


SEMEANDO O AMOR ENTRE O PAI E A MÃE, EU NASCI.

SEMANA DA CRIANÇA.

DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Os primeiros anos de vida de uma criança são marcados por grandes transformações e descobertas. Aos poucos, os pequenos começam a entender o mundo em que vivem e aprendem a lidar consigo mesmos e com os outros. Para ajudar você a compreender melhor o universo infantil,vou caminhar com você na Revista Escola da Abril.
VAL
O PENSAMENTO INFANTIL
DIÁLOGO 1 DESENHO 1
"Este é o planeta e as estrelas. E estas são estrelas também. E o astronauta."   Yolanda

"Tem uma Lua ajuntada (cheia) que parece uma bola e tem uma outra que é sem ajuntada." Yolanda

"Sem ajuntada é quando ela tá sumindo. Quando ela tá ajuntada é quando é meia-noite."  Julia

"Aí, não é. Quando tá meia-noite, a gente tá dormindo. Então a Lua não tá ajuntada."  Yolanda
Revirando a memória, todos nós recordamos de ambientes, passagens e sensações da infância. Mas você saberia dizer como costumava explicar a alternância entre o Sol e a Lua no céu? A criança tem uma maneira muito peculiar de entender o mundo e, à medida que cresce, se desenvolve, tem acesso a novas informações e experiências e esquece seu antigo modo de pensar.
As crianças têm uma maneira peculiar de entender o mundo, que vai aos poucos se perdendo, conforme elas têm acesso a novas informações. Entenda como os pequenos criam suas teorias.
O professor de Educação Infantil, como muitos outros adultos, presencia e vive essa evolução. Conhecer a maneira como os pequenos formulam as primeiras explicações não é apenas reviver o frescor da visão sem as amarras dos primeiros anos de vida. Um educador que considera os processos por que passa a criança qualifica suas intervenções no contato diário com ela. Afinal, o que se quer é tornar cada vez mais sofisticada, coerente e ativa a forma de ela apreender a realidade. 
 Um ponto importante para começar nessa aprendizagem é garantido já no primeiro ano de vida. O bebê adquire uma noção de abstração. Ele percebe que os elementos ao seu redor existem independentemente de os estar vendo - o conceito de permanência dos objetos.
Assim, ele passa a criar imagens mentais sobre as coisas - ele sabe que a mamadeira existe, por isso pode evocá-la mesmo quando não está em seu campo de visão. Com a aquisição da linguagem, a criança entra no território do simbólico: uma palavra, uma expressão corporal ou um desenho representam um objeto ou conceito e, com base na associação de alguns deles, cria-se uma ideia.
Com esses recursos, ela pensa sobre tudo o que vê, ouve e sente. Nesse contexto, entram em cena os famosos "por quês?". O fato, porém, é que os pequenos se põem muito mais questões do que expressam e as resolvem formulando teorias. Para isso, lançam mão de um repertório de informações e da observação dos fenômenos, relacionando-os de maneira muito particular. Uma característica desse processo é a de se colocarem como a figura central nas explicações - se eles estão dormindo e não podem ver o céu, a Lua não pode estar cheia (leia o diálogo ). Esse princípio se liga à afetividade, que, segundo o francês Henri Wallon (1872-1962), é o que mais influencia a criança nas relações que estabelece entre as informações assimiladas. "É por isso que, quando ela pergunta 'por que fica de noite?', o adulto pode entender que ela está perguntando 'porque fica noite para mim?'", explica Heloysa Dantas, educadora estudiosa do pensamento de Wallon. "O adulto pode dar a explicação que achar conveniente, mas a que contentaria mais a criança em suas inquietações pessoais seria 'fica de noite para você poder dormir'."
Outras lógicas frequentes nas explicações infantis são o animismo e o artificialismo. Pela primeira, atribuem-se características e ações humanas aos mais diversos elementos da realidade ("O Sol vai dormir. Por isso, fica noite!"). De acordo com o segundo, entende-se que todos os fenômenos podem ser explicados por um processo de fabricação artesanal ("As montanhas se formam porque os homens colocam terra em cima"). Wallon define o pensamento infantil como sincrético, uma espécie de nuvem de elementos que vão se combinando para criar sentidos.

DIÁLOGO 2 DESENHO 2

"Este é o céu de noite. Aqui, a borboleta está dormindo, pintada de preto, porque tá escuro. Este é o céu de dia, com a borboleta vermelha porque tá claro." Giovanna

"Por que a fivelinha não sai voando?" Monique

"Ela não tem asa para voar." João

"Tudo o que a gente jogar vai cair no chão?" Monique

"Vai! Só passarinho que não." Giovanna

"E o que puxa as coisas para o chão?" Monique

"Ímã!" Giovanna

"Nesta parte da Terra está de noite porque os raios do Sol não tão batendo aqui. Eles tão batendo do outro lado do planeta, que vai girando ao redor do Sol. Quando anoitece, é o Sol que está escondido atrás das nuvens." Anita

Como se vê, a lógica científica não é o principal parâmetro da criança para esclarecer o funcionamento das coisas. "Ela relaciona o que lhe parece adequado, sem necessitar submeter a ideia a convenções preestabelecidas", afirma Heloysa. Sem se dar conta, os pequenos criam metáforas para explicar a realidade. "Daí a riqueza poética de sua forma de pensar. Entender o Sol e a Lua como namorados brigados que nunca ficam juntos segue o mesmo padrão de raciocínio apresentado por Camões, em Os Lusíadas, ao tratar uma pedra grande por Gigante Adamastor. É algo da natureza do pensamento infantil que apenas os artistas não abandonam em prol da lógica prática."
É preciso ainda levar em conta que a criança constrói formulações de acordo com suas possibilidades cognitivas. Os conhecimentos científicos - complexos e abstratos que requerem um raciocínio hipotético-dedutivo - ainda são inacessíveis aos pequenos. Mas é na Educação Infantil que eles começam um percurso de aprendizagem e desenvolvimento que os tornará capazes de operá-los melhor.
O bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934) diferenciou os dois tipos de conceito que convivem na compreensão da criança pequena sobre o mundo que a cerca: os científicos (assimilados na instrução formal) e os cotidianos (obtidos no convívio prático).

O pensador desenvolve sua teoria com base na ideia de que os primeiros saberes da criança sobre o mundo vão se sofisticando ou perdendo espaço para outros, mais próximos dos conhecimentos científicos. "Primeiro, ela conhece o cachorro da casa dela. Em seguida, vai entendendo que aquele cachorro é um ser vivo, para depois assimilar que pertence à espécie dos canídeos e também é um mamífero", explica Teresa Cristina Rego, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e especialista nas obras de Vygotsky.
As formulações criadas pelos pequenos nos primeiros anos de vida também estão ligadas a situações e elementos proporcionados pelo meio em que vivem. Ao ver uma foto de uma nebulosa (corpo celeste gasoso e nevoento), uma menina de 4 anos define: "É uma nave alienígena" - algo que dificilmente seria dito por uma criança de uma comunidade indígena isolada. A linguagem, portanto, é apenas uma das condições para o pensamento abstrato, que ajudaria a moldar esse olhar da criança e a sua forma de construir formulações.
Se a cultura influencia a observação e a explicação de fenômenos, também não se pode retirar da criança o papel principal do desenvolvimento de seu próprio pensamento. "Ela não se contenta em repetir o que é dado culturalmente. É ativa e produz em cima disso", argumenta Monique Deheinzelin, assessora da Escola Comunitária de Campinas, a 100 quilômetros de São Paulo.
Nessa construção, no entanto, alguns cuidados precisam ser tomados. Embora a explicação pessoal para os fenômenos naturais tenha grande importância no desenvolvimento infantil, cabe à escola aproximar os pequenos dos conhecimentos científicos. E isso vai se dando aos poucos. A criança pode até saber que está de noite porque os raios do Sol não batem aqui, em uma explicação que faria acelerar o coração de qualquer docente da pré-escola.
Na mesma conversa, no entanto, ela pode dizer que anoitece quando o Sol está escondido atrás das nuvens (leia a frase acima). Como analisa Zilma de Moraes Oliveira, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais e Letras da USP, em Ribeirão Preto, a 315 quilômetros de São Paulo, o docente não deve nem ignorar o raciocínio infantil nem impor a teoria adulta. "O educador deve criar um ambiente de escuta. É uma atitude de inclusão da criança em um ambiente de reflexão", diz. "Compreendendo a linha de pensamento dos pequenos, o docente localiza pontos para intervir", afirma.
Quer saber mais?
CONTATOS
Heloysa Dantas
Teresa Cristina Rego
Zilma de Moraes Ramos de Oliveira

BIBLIOGRAFIA
As Origens do Pensamento na Criança, Henri Wallon, 540 págs., Ed. Manole, tel. (11) 4196-6000 (edição esgotada)
Henri Wallon: uma Concepção Dialética do Desenvolvimento Infantil, Izabel Galvão, 136 págs., Ed. Vozes, tel. (24) 2233-9000, 21,20 reais
Vygotsky - Uma Perspectiva Histórico-Cultural da Educação, Teresa Cristina Rego, 140 págs., Ed. Vozes, 21,20 reais
Pensamento e Linguagem, Lev Vygotsky, 216 págs., Ed. Martins Fontes, tel. (11) 3082-8042, 38,90 reais

http://revistaescola.abril.com.br/desenvolvimento-infantil/

Tem um monstro no meio da história

Os casos e as fabulações, em que relatos ganham elementos de ficção, são uma marca das narrativas infantis e fazem parte da evolução cognitiva

Vagens supersônicas a planetas distantes. Lutas com gorilas. Bebês que sobem sozinhos no lustre. Cenas como essas só acontecem em filmes, livros e desenhos animados - ou na fala de uma criança pequena que conta sobre sua vida. Ficção e relato de experiências vividas são gêneros diferentes, mas, nos primeiros anos de vida, é comum que se combinem nas narrativas infantis, como apontou a linguista Maria Cecília Perroni no livro Desenvolvimento do Discurso Narrativo. Segundo ela, no entanto, esse recurso não deve ser entendido como um problema de falta de clareza entre o real e o imaginado. Ao contrário: é preciso encará-lo como um dos elementos mais importantes para o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos pequenos. O que se testemunha nesse tipo de construção é justamente o nascimento do discurso narrativo - uma das principais estruturas de expressão de qualquer pessoa e uma essencial troca comunicativa.
Esse processo - que se estende até a idade adulta - começa antes mesmo de a criança conseguir falar. Nesse período, ela já é capaz de entender as histórias contadas pelos adultos e o contato com relatos cotidianos ou contos de fadas, por exemplo, faz com que, aos poucos, adquira um repertório de imagens, nomes e roteiros de ações que utilizará mais tarde. Também a compreensão dos usos e do funcionamento da linguagem tem início nessa fase, com o adulto como modelo da forma de se comunicar e como voz da cultura em que está inserida. Assim, quando conquista condições fisiológicas de falar e passa a descrever com palavras um encadeamento de ações que se desenrolam no tempo - uma possível definição de narrativa -, ela acessa todos esses diferentes repertórios acumulados desde os primeiros meses de vida.

Adquirir a fala, por sua vez, é um passo transformador em termos cognitivos, uma vez que é a linguagem que organiza o pensamento. "O pensar não se estrutura internamente, mas no momento da fala", explica Maria Virgínia Gastaldi, formadora de professores do Instituto Avisa Lá, de São Paulo. "A narrativa (primeira estrutura da oralidade com que a criança tem contato em seu cotidiano) é, portanto, o que modela e estimula a atividade mental." A oralidade é, dessa forma, um dos principais motores do desenvolvimento na primeira infância e aspecto-chave da creche e da pré-escola 
Ao construir narrativas, a criança brinca com a realidade e encontra um jeito próprio de lidar com ela
A postura do professor ou da família na interlocução com os pequenos, por sua vez, faz toda a diferença. "O ideal é que ele seja um verdadeiro co-construtor das narrativas, incentivando acriança a avançar nos recursos que utiliza em suas construções", diz Maria Virgínia. "As limitações linguísticas nessa fase são importantes e o adulto deve não só escutar o que ela diz mas também reconhecer sua intenção comunicativa e ajudá-la a expressar-se melhor." Assim, se na hora de recontar a história de um livro conhecido - sobre um personagem que tem medo de ir ao dentista, por exemplo -, a criança diz "o dentista lavou meu dente" (remetendo-se a uma experiência dela mesma, real ou imaginada), o professor pode perguntar se aquilo aconteceu com o personagem do livro também, como é o nome dele, o que ele sentiu quando estava no dentista, o que aconteceu depois etc. Essa co-construção é o chamado "jogo de contar" - situação básica de aprendizagem quando o assunto é oralidade e que envolve uma relação de cumplicidade entre a criança e seu interlocutor.

Em rodas de conversa, é muito comum que os pequenos comecem contando sobre o passeio que fizeram ao zoológico com a família e terminem narrando como quase caíram na jaula do leão ou como o irmão se perdeu e não foi mais encontrado. Esses "causos" têm ligação com a presença do faz de conta no pensamento infantil e a maneira de apreender o mundo e elaborar os sentimentos, que é uma característica marcante nessa faixa etária. "A criança brinca com sua realidade, extravasando-a para experimentar outros papéis e situações", diz Gilka Girardello, professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Segundo ela, ao fazer isso, os pequenos articulam imagens do repertório que conquistaram ao longo de sua vida para explorar futuros potenciais. A criação de papéis e situações de faz de conta nas brincadeiras ("Eu era herói, você, o monstro" e "Eu era a mãe, você, a filhinha") assume a forma de simbolização nas narrativas infantis ("Meu irmão mais velho começou a se afogar e meu pai pediu que eu o salvasse", dito por uma criança de 3 anos, por exemplo).
"Sabe, um dia o Alê se afogou e daí o meu pai ficou lá. Eu disse: "Pai, deixa que eu pulo na piscina. Eu quase que caí... Aí eu pulei lá e salvei o Alê. O Alê ainda era pequeno."
Para o psicanalista e pesquisador da infância Donald Winnicott (1896-1971), as simbolizações se enquadram no que ele chamou de espaço potencial. "Trata-se de uma área de experiência em que os pequenos podem brincar com a realidade, em que dão um sentido pessoal aos elementos do ambiente e os elaboram à sua maneira para com eles poder lidar", explica Ana Paula Stahlschmidt, doutora em Educação e estudiosa da obra do pesquisador. Esse espaço potencial, segundo Winnicott, deve ser garantido pelo adulto para que o pequeno dê liberdade à sua criação - não apenas artística, mas como uma forma autêntica de encarar a vida.

Se, por um lado, fica claro que a criança precisa brincar com os elementos de seu repertório - sem ser reprimida por não estar contando "a verdade" sobre o passeio ao zoológico -, por outro é preciso cuidar para que ela tenha matéria-prima para fazê-lo: um repertório de histórias diversificado. O contato com relatos de experiências nos grupos em que circula (na fala de adultos e também de outras crianças) e com textos literários (lidos e contados) é fundamental para ela se familiarizar com os aspectos estruturais da narrativa, como marcadores de tempo e espaço e a contextualização de situações.
Situações vividas, imaginadas ou presentes em histórias ouvidas se misturam nas narrativas infantis
"Também o elemento da dramatização é incorporado pelos pequenos no contato com narrativas", diz Lélia Erbolato Melo, linguista da Universidade de São Paulo (USP). "Eles vão percebendo e incorporando os ingredientes que tornam as histórias interessantes, como a ação, os conflitos e o inesperado, e trazem isso para aquelas que contam." Além disso, o acesso a textos tem um papel importante no amadurecimento afetivo dos pequenos, garantindo que ampliem seu universo de experiências para além do que podem observar no seu cotidiano. "Ao ouvir histórias, a criança cria hipóteses sobre como se sentiria se estivesse frente aos mesmos dilemas e situações do personagem", diz Gilka. "Para os menores, é natural que essa vivência, tão forte, seja incorporada às narrativas que constroem na forma de casos." 


Os fatos e a ficção são separados por uma fronteira flexível

"Aqui é a praia da minha avó e eu com uma prancha, quando vem a onda. Minha avó vai ter dois netos: meu irmão e meu primo. Ela também tinha um cachorro e um gatinho. Uma vez eu vi minha avó costurar uma roupa. Meu pai nunca foi na casa da minha avó." Eric, 4 anos. Reprodução/Agradecimento Escola Viva

A distinção entre ficção e realidade ainda está em desenvolvimento nos anos da Educação Infantil- um aspecto que sempre deve ser considerado nas conversas com os pequenos. Isso se relaciona com uma das características mais vivas do pensamento da criança: o sincretismo, ou seja, a liberdade de associar elementos da realidade segundo critérios pessoais, pautados principalmente por afetividade, observação e imaginação.

É comum, quando se lê uma história como Chapeuzinho Vermelho, que uma criança interrompa para dizer que "a avó também mora perto de uma floresta" ou que ela "viu um cachorro na casa do vizinho" (no momento em que o lobo surge no texto, por exemplo). Quando assume o papel de narrador, essa flexibilidade de fronteiras entre experiência pessoal e situação imaginada se mostra tanto nos relatos reais como nas histórias ficcionais. "O mais comum e saudável é que a criança misture realidade e ficção para mais tarde separá-las", diz Maria Virgínia. Segundo a especialista, o adulto não deve questionar se o que ela conta é verdade ou invenção, mas embarcar na aventura e pedir mais detalhes. "Em muitos casos, ela vai rir ou dizer que o adulto já sabe que aquilo não é verdade." Em geral, a inquietação do professor vem do medo que isso se fixe como um padrão de comportamento - em outras palavras, que a mentira se torne uma constante na vida futura. "Os jogos de contar e a experiência com os usos sociais de comunicação são suficientes para a criança se ater cada vez mais aos fatos 'vividos' em seus relatos", afirma Maria Virgínia.

O único cuidado essencial ao professor é não tirar conclusões precipitadas sobre as narrativas. O aluno falar de uma briga violenta, por exemplo, não quer dizer que isso aconteça na casa dele. "Não é possível saber a quem as crianças se remetem com seus personagens", diz Ana Paula.


Quer saber mais?

CONTATOS
Ana Paula Stahlschmidt
Gilka Girardello
Lélia Erbolato Melo
Maria Virgínia Gastaldi

BIBLIOGRAFIA
Desenvolvimento do Discurso Narrativo, Maria Cecília Perroni, 248 págs, Ed. Martins Fontes (edição esgotada)
Em Busca de Alternativas para a Entrada da Criança na Escrita, Lélia Erbolato Melo, Ed. Humanitas, 177 págs., tel. (11) 3091-2920, 20 reais
O Brincar e a Realidade, Donald W. Winnicott, 208 págs., Ed. Imago, tel. (21) 2242-0627, 45 reais

Quando o aluno ajusta os ponteiros e descobre o tempo

Para dominar a noção de tempo, a criança pequena precisa desenvolver a percepção sobre a sequência dos eventos e sua duração

"O tempo objetivo, que medimos com o relógio e o calendário, é uma construção humana e não uma natureza pronta e observável", diz Valéria Milena Röhrich Ferreira, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). "Operar com esse conceito, tão abstrato, é uma aprendizagem complexa e vai além de compreender seu sistema de quantificação."

Um sinal de que os pequenos ainda experimentam nesse campo é a confusão no uso de marcadores temporais, tão frequentes em sua fala. A descrição de Gabriela, 4 anos, sobre seu desenho é um exemplo disso: "Aqui é quando eu for pequena", diz ela, referindo-se à sua aparência atual.

A importância da ideia de sequência 

Nos primeiros anos de vida, a criança é muito focada no presente e nas ações que nele se dão. Brincar, assistir a um desenho na TV, tomar banho: os pequenos não têm consciência de que uma ação é seguida por outra e que, em geral, elas se repetem em uma determinada ordem em seu dia a dia.

Conforme vai vivenciando esse mundo, ela começa a perceber a existência de ciclos, sua primeira referência de que o tempo passa. Nessa perspectiva, o trabalho sobre a rotina escolar - em que o professor antecipa as atividades do dia e a sua ordem - é fundamental. Com ele, os pequenos observam a regularidade nessa sequência de eventos, podem pouco a pouco antecipá-la e, mais tarde, até relacioná-la às horas do relógio, por exemplo, ainda que de forma rudimentar (sem compreender, de fato, o funcionamento desse sistema de medição).

Essa percepção da rotina é o embrião de um aspecto importante na compreensão sobre o tempo: a noção de que as coisas acontecem em uma ordem, ou seja, de que o que se faz no momento é antecedido e será seguido por algo - a ideia de sequência. "Organizar as ações no tempo dá à criança a possibilidade de constituir uma história pessoal, de pensar em passado", afirma Lino de Macedo, docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). "Com isso, ela pode reconhecer seu repertório, sua trajetória como indivíduo, e vai delineando sua identidade. Por mais que inicialmente isso tenha de ser feito com a ajuda de pais e professores."

Com essa percepção, a criança pode pensar em sua própria história e também estabelecer conexões dela com outras - a de colegas de classe, parentes e, aos poucos, de grupos mais distantes.

A noção de duração ajuda a criar a capacidade de medir 
O tempo é um fluxo - todo possível fim é seguido de um começo, numa sequência sem nenhuma previsão para acabar. O homem, porém, precisa pensar em prazos para poder planejar - uma necessidade que aparece bem cedo, como vemos no exemplo de Ian, no início do texto. "Ao perceber a existência de ciclos, é quase uma consequência que se conte a quantidade deles, juntando o tempo cíclico com o linear", diz Lino de Macedo. "Os antigos quantificavam o tempo dessa mesma maneira. A mulher grávida, por exemplo, sabia de antemão que a cada nove luas cheias ela daria à luz."

Quando chegam à escola, os pequenos costumam se inquietar com a partida dos pais. Isso se dá, em grande parte, porque eles ainda não são capazes de visualizar quando irão reencontrar a família - a duração dessa separação, justamente. Essa questão também é trabalhada com a vivência da rotina escolar, em que a sequência de atividades permite antecipar o que farão antes de voltar para casa. Com isso, são capazes de mensurar o tempo, ainda que intuitivamente, e iniciam-se nos princípios de medição. Para Lino, um salto transformador se dá com isso. "Se a ideia de sequência permite à criança se relacionar com o passado, a de duração possibilita lidar com o que ainda está por vir", argumenta ele.
"Quando os bebês nascem, eles são velhos. Já estão todos enrugados." Caio
Embora os sistemas convencionais de medida sejam ainda muito complexos, é importante que os pequenos tenham contato com eles. "Por volta dos 3 anos, as crianças já demonstram interesse e começam a fazer perguntas relativas ao relógio, aos dias da semana, aos meses", explica Clélia Cortez, formadora do Instituto Avisa Lá, em São Paulo.

Segundo ela, o professor de Educação Infantil pode apresentar às turmas esses portadores, como o calendário. "Uma forma de explorá-lo no dia a dia escolar é a consulta de quantos dias faltam até uma determinada data de interesse da turma, como uma festa e o aniversário de alguma das crianças", sugere a formadora. O objetivo com essa proposta não é que as crianças se pautem pelo tempo do relógio ou do calendário - algo impraticável nessa altura do desenvolvimento infantil, em que seu pensamento ainda não é lógico-dedutivo -, mas que elas comecem a refletir sobre as práticas de sua cultura relacionadas à forma de se organizar no tempo.

Enquanto ainda não domina os sistemas convencionais, a criança pequena cria alguns parâmetros próprios para se relacionar com a passagem do tempo. Um interesse comum entre os pequenos, por exemplo, é saber a ordem de nascimento de seu grupo de amigos ou primos. Como, no início, ela ainda não domina o sistema numérico, a idade ainda não é seu principal critério de medição. É o que constatamos na fala de Eric, 4 anos, ao responder se era mais velho do que um amigo: "Eu sou mais alto do que o Tato, então, sou mais velho".
"Qual brinquedo você mais gostava quando era criança?" Álvaro
"Minha bicicleta vermelha." Pai
"Vermelha? Mas na sua época não era tudo preto e branco?" Álvaro
A altura seria um indicador de alguém ter mais anos de vida, já que a correspondência entre idade e estatura costuma funcionar entre as crianças. "Todos captamos a ação do tempo pela transformação de algo que continua existindo", diz Maria Luiza Leão, psicopedagoga e diretora do Tekoa - Centro de Estudos da Aprendizagem, no Rio de Janeiro . "Crescer, ser alto, é algo que demonstra uma transformação a partir do pequeno." Cabe ao adulto questionar esse parâmetro constituído pelas crianças, apontando casos em que ele não é válido - se a avó da criança tem 1,50 metro, e seu primo adolescente, 1,80 metro, talvez seja melhor usar outra maneira para definir quem é mais velho.

O uso dos parâmetros pessoais, por outro lado, faz parte do desenvolvimento da criança e demonstra que ela percebe a importância de se organizar com base em referências temporais. O que de início se pauta pelo princípio da comparação aos poucos caminha para a compreensão do funcionamento dos sistemas convencionais de medição. Uma criança pode pensar sobre os anos de seu avô (60, por exemplo) contrapondo-os aos 6 anos que ela tem: com a referência de sua própria idade, consegue se relacionar com a de seu avô. Mas como usar o mesmo parâmetro para comparar cifras tão distantes quanto o seu tempo de vida e a época em que viveram os dinossauros? Conforme ela volta o interesse para o mundo, torna-se mais importante trazer para suas representações referências temporais para todas as situações em que medidas de tempo sejam requisitadas, como as horas, os dias e os anos. "É como se ela iniciasse uma jornada que a afastasse de sua experiência para ter um olhar mais amplo", diz Maria Luiza.

* Os desenhos e os diálogos publicados nesta reportagem são de crianças de turmas de 4 e 5 anos da ESCOLA VIVA, em São Paulo, SP
Quer saber mais?
CONTATOS 
Clélia Cortez
Maria Luiza Leão
Valéria Milena Röhrich Ferreira

BIBLIOGRAFIA
A Noção de Tempo na Criança
, Jean Piaget, 324 págs., Ed. Record, tel. (11) 3286 0802, 44 reais
Ensaios Pedagógicos: Como Construir uma Escola para Todos?, Lino de Macedo, 168 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 38 reais

INTERNET 
Leia o texto Chrónos & Kairós: O Tempo nos Tempos da Escola, de Valéria Ferreira e Yvelise Arco-Verde  

Peça a peça, o mundo se constrói

Ao explorar objetos e ambientes variados, a criança vai montando uma representação do espaço e aprende a se orientar por pontos de referência

Logo nos primeiros dias de vida, o bebê se inicia em uma jornada digna de um desbravador. Sem experiência, ele precisa distinguir e compreender as formas estáticas e em movimento que aparecem em seu campo de visão. Em outras palavras, para ele, o espaço ao redor ainda está por se constituir. "Lidar com o mundo, nessa fase, é reconhecer objetos e interagir com eles", explica Lino de Macedo, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). "O desafio é grande porque o espaço é algo contínuo, sem separações." As rupturas entre os objetos e as relações entre eles são construídas ao longo do desenvolvimento infantil e se estendem ao menos até a adolescência. 

Essa criação pessoal do mundo ocorre em paralelo a outro processo importante: a construção da subjetividade, que se dá em grande parte pela exploração dos limites do próprio corpo. Uma elaboração colabora para o avanço da outra, tornando o entendimento sobre o entorno cada vez mais complexo e abrangente. 

Um aspecto fundamental para esse desenvolvimento em duas frentes é a ideia de permanência do objeto. Trata-se da capacidade de criar uma imagem mental de algo, mesmo sem tê-lo diante dos olhos. Ao ser capaz de fazer isso, o bebê tem a primeira questão espacial - onde está o objeto que ele sabe existir, mas está ausente? Essa noção ganha um impulso quando ele começa a se deslocar com autonomia.
A criança cria coordenadas espaciais e relaciona os objetos conforme se desloca e explora o ambiente.
Assim que aprende a engatinhar, a criança não só pode pensar numa bolinha, por exemplo, mas se propõe a encontrá-la. Assim vem uma sequência: achar o brinquedo no ambiente em que ele está, entender onde ela própria se encontra e elaborar uma trajetória de deslocamento para chegar ao objetivo. Para isso, são necessárias referências para a orientação. Surge aí a exigência de estabelecer relações posicionais entre os objetos - se a bolinha rolou para trás do sofá, como se deslocar para alcançá-la?

Pela ação, os bebês compreendem o entorno 
De início, os pequenos brincam com o próprio corpo - as mãos e os pés - e as roupas, que vestem como se explorassem objetos distintos. Depois, passam a manipular tudo o que veem, observando o resultado de suas ações sobre essas coisas. Quem nunca presenciou a cena de um bebê sentado em um cadeirão jogando ao chão todos os objetos ao seu alcance? Com isso, ele observa as diferentes consequências de seu ato: há coisas que rolam, que ficam estáticas e que pulam. Até os 3 anos, é isso o que amplia a percepção sobre o entorno. Dos 4 aos 6, ela expande a experimentação para a representação do espaço em desenhos e brincadeiras, por exemplo. Isso se percebe nos traços de Pedro, 6 anos (veja o primeiro desenho). A imagem que produziu do apartamento em que mora demonstra que tem uma boa capacidade de relacionar os diferentes cômodos com base em coordenadas espaciais ou pontos de referência.

O mesmo princípio ocorre com a representação que os pequenos têm do próprio corpo. Nesse processo, eles desenvolvem ainda a percepção de que ele tem dois lados - o esquerdo e o direito. Esse conceito, da lateralidade, se desenvolve em geral por volta dos 7 anos (a idade pode variar) e permite que a criança diga se um objeto se localiza mais próximo à sua esquerda ou direita - embora nomear os dois campos seja difícil num primeiro momento (como no diálogo abaixo).
"Como você faz para ir do seu quarto para a cozinha, Laura?" Repórter
"É assim: eu tô no meu quarto, ando um passo reto e faço uma curva." Laura
"Mas para que lado é a curva?" Repórter
"Pra lá, assim (e indica a esquerda com a mão)." Laura
"Assim como?" Repórter
"Assim, para o lado dessa mão. Aí depois a gente vira assim (voltando o corpo para a direita) e entra na cozinha." Laura
"Essa possibilidade de referência para a localização dos objetos, que vem do próprio corpo, é a base da orientação espacial", explica Valéria Queiroz Furtado, especialista em psicomotricidade e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). "O próximo passo é conseguir projetar essas referências para um objeto em relação a outro sem ter de se colocar fisicamente no lugar dele."

Esse desenvolvimento depende bastante da pluralidade de experiências e do espaço a que cada um tem acesso. "A ampliação do repertório de vivências faz com que se refine a percepção da posição do próprio corpo no espaço e projete a forma de se deslocar para atingir um objetivo", diz Valéria. "Há uma memória de movimentos a que recorrer." Isso permite não só se situar no espaço em que se encontra mas também imaginar novos ambientes com base na possibilidade de representá-los. A criança utiliza suas noções espaciais ao remontar cenas domésticas, enquanto brinca de casinha, por exemplo, e ao ouvir contos de fadas, quando cria em sua mente como seria o assustador castelo da bruxa.
Ao perceber que o corpo tem o lado esquerdo e o direito, os pequenos passam a usá-los como referência.
Numa época em que os pequenos têm cada vez menos chances de explorar ruas e quintais, o papel da escola se torna decisivo. "Há a tendência de evitar que eles se arrisquem do lado de fora, restringindo-os a ambientes em que não existem chances de acidentes e quedas - ou seja, espaços artificializados", diz Ana Paula Yazbek, diretora pedagógica do Espaço da Vila - Berçário e Recreação, em São Paulo. "Embora os cuidados com a segurança sejam muito importantes, a garotada precisa explorar diferentes texturas e níveis de piso, por exemplo, e enfrentar o que se configura como desafios espaciais - equilibrar-se, rolar no chão, subir em móveis com a supervisão de um adulto e manipular objetos variados." 

Alguém que sabe se deslocar de um lugar a outro sabe voltar ao ponto inicial, certo? No caso dos pequenos, não de imediato. Esse conceito, chamado reversibilidade, é algo adquirido à medida que eles possam encontrar referências espaciais que os orientem. Enquanto ainda não têm essa capacidade de se localizar com base em coordenadas, o simples fato de voltar da cozinha para a sala de uma casa desconhecida pode ser uma missão difícil. Giovanna, 5 anos, por exemplo, diz conhecer o caminho da casa de sua avó até a sua, mas não o contrário (veja o desenho acima). Quando traça o trajeto, ela demonstra ainda não ter uma representação mental dele: registra-o como uma linha reta, sem referências espaciais que a oriente (os poucos detalhes que aparecem no itinerário são elementos que ela costuma ver, como um carro e semáforos, mas não servem como coordenadas). A noção de reversibilidade diz respeito ao desenvolvimento cognitivo da criança de forma geral: se ela vê a transformação de algo, saberá revertê-lo ao seu estado original. 
Saber ir e voltar pelo mesmo caminho é uma função adquirida quando a criança já tem referências espaciais.
Multifacetada, a noção de espaço é, desse modo, um processo de amadurecimento que pode ser favorecido por professores e pais. "Isso é condição para pensar sobre a realidade em que se vive", diz Monique Deheinzelin, assessora da Escola Comunitária de Campinas, em Campinas, a 100 quilômetros de São Paulo. "O adulto não pode apressar essa aquisição, mas deve garantir que a criança tenha oportunidades de se colocar problemas em relação ao seu entorno."
* Os desenhos e os diálogos publicados nesta reportagem são de crianças de turmas de 5 e 6 anos da Central Creche da Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP
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CONTATOS 
Ana Paula Yazbek
Lino de Macedo
Monique Deheinzelin
Valéria Queiroz Furtado

BIBLIOGRAFIA
Representação do Espaço na Criança
, Jean Piaget, 512 págs., Ed. Artes Médicas, tel. 0800-559-033 (edição esgotada)
Construção do Real na Criança, Jean Piaget, 392 págs., Ed. Ática, tel. (11) 3990-1775, 37 reais
Desenvolvimento Psicomotor e Aprendizagem, Vitor da Fonseca, 582 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 98 

Uma moral para agir no mundo

Distinguir entre certo e errado e agir segundo princípios éticos depende do desenvolvimento da cognição e da afetividade de crianças e jovens

Não há pais ou professores que não abram um sorriso de satisfação ao receber um elogio sobre a boa educação dos filhos ou dos alunos. A sensação de dever cumprido despertada nessas ocasiões é fácil de entender. Afinal, pelo senso comum, são eles os grandes responsáveis por garantir que crianças e adolescentes tenham uma vida social saudável e colaborem para a harmonia dos grupos dos quais fazem parte. De fato, pais e mestres são figuras centrais no desenvolvimento moral, ou seja, no julgamento que a criança tem sobre o que é certo ou errado. Mas, na prática, o verdadeiro protagonista desse amadurecimento é ela própria, que constrói desde cedo um conjunto de valores pessoais. E, mais importante ainda: é ela quem também toma decisões frente aos dilemas morais que encontra no dia a dia.
Nesse processo, o senso de justiça é um dos principais aspectos a serem desenvolvidos. Ele foi tema de estudo do suíço Jean Piaget (1896-1980), que, com base em pesquisa sobre a forma como os pequenos lidam com as regras em situações de jogos e dilemas morais, constatou que a construção do sentido de justo e injusto tem ligação com o desenvolvimento cognitivo. Segundo ele, as crianças passam por diferentes tipos de compreensão em relação às regras. Conforme amadurecem, obtêm cada vez mais condições de se relacionar com elas de maneira crítica. Assim, constituem uma moral dita autônoma, pela qual passam a considerar a intencionalidade dos atos.

Nos primeiros anos de vida, os pequenos vivem um período de iniciação às regras e precisam da intervenção constante de um adulto que os oriente sobre o que é aceitável - não morder o irmão e não bater nele, pedir um biscoito ao dono do pacote em vez de tomá-lo etc. "As regras existem para regular a relação entre as pessoas", diz Nelson Pedro-Silva, professor de Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. "Todos nós abrimos mão de alguns desejos em vista de viver em sociedade, fato que a criança deve enfrentar desde cedo para que possa compreendê-lo." 

"Aqui na creche tem uma regra: não subir no poste da quadra."  Mileva, 5 anos
"E por que não pode subir?"  Repórter 
"Porque a gente pode cair e quebrar a cabeça."  Mileva 
"E mesmo assim vocês fizeram isso?"  Repórter 
"É porque a gente pensava que não tinha regra."  Mileva
Conhecendo regras, os pequenos adquirem um primeiro repertório para atuar em grupo, mas não refletem sobre elas. Eles as cumprem porque respeitam uma autoridade (pais, professores, o porteiro do prédio, o primo mais velho) e não necessariamente porque concordam com elas. Se, por exemplo, uma criança da Educação Infantil souber que é proibido jogar objetos nos outros ou subir nos postes da quadra da escola (veja os diálogos da primeira imagem e do quadro acima), ela provavelmente não fará isso por temer uma reprimenda e não porque pensou sobre esses atos e suas consequências. Trata-se, assim, de uma moral dita heterônoma. "É fundamental, porém, que ela seja orientada a agir de maneira cooperativa em relação ao outro, mesmo quando ainda não consegue se conscientizar da importância disso", pondera Pedro-Silva. 
Como ainda não tem condições de analisar regras, a criança se relaciona com elas pelo respeito à autoridade.
Dessa forma, por exemplo, num conflito em que um menino não deixa o outro participar de um jogo, porque este bate nos colegas e estraga a partida quando está perdendo, é importante que o professor faça uma mediação. Ele pode promover a escuta do garoto que foi excluído da brincadeira e do que teve seu jogo arruinado. Assim, pode-se chegar a um acordo para que ambos cooperem e possam jogar juntos - a forma de pensar deles é, com isso, desafiada.

O mesmo vale para os adolescentes. Em conversas orientadas, eles podem conhecer a perspectiva do outro e, assim, avançar na construção dos valores morais e da autonomia. É fundamental aproveitar situações que geram desequilíbrios na forma de pensar das turmas.

A moral também está ligada aos sentimentos e às emoções 

Segundo Piaget, o desenvolvimento moral e, mais ainda, as ações relacionadas a ele dependem de uma espécie de "energia motora" para que ocorram: a afetividade. Esse aspecto ganhou cada vez mais espaço nas pesquisas e, hoje, o desenvolvimento de questões ligadas a sentimentos e emoções ocupa o primeiro plano nos estudos sobre a moralidade. Esse novo olhar teve início com as pesquisas da americana Carol Gilligan, que chamou a atenção para uma forma de desenvolvimento da moralidade definida como ética do cuidado, a qual se centra na capacidade de pensar na saúde das relações entre as pessoas. Com isso, distinguir o justo do injusto passou a ser visto como apenas um dos muitos aspectos do desenvolvimento moral da criança e do adolescente. A nova perspectiva ampliou as pesquisas para o desenvolvimento psíquico de outras virtudes, como a generosidade, a compaixão e a lealdade. 
"Quando eu vejo alguém fazendo uma coisa que não pode, eu não conto. Eu guardo aqui na minha caixinha de histórias (apontando para a cabeça)."  Caio, 5 anos
"E por que você prefere não contar?"  Repórter 
"Porque é muito feio falar. A pessoa leva bronca."  Caio 
"Mas o certo não é obedecer à regra?"  Repórter 
"Você iria achar legal levar uma bronca se fosse com você?"  Caio
Distintas dos aspectos cognitivos, essas virtudes podem ser a chave para entender por que mesmo um garoto pequeno, como Caio, 5 anos, que demonstra ainda não se guiar por uma moral autônoma, assume a postura de não delatar os amigos quando eles infringem uma regra (leia o diálogo acima). "O desenvolvimento moral é um sistema dinâmico, um processo não só cognitivo, como afetivo, social e cultural", diz Ulisses Araújo, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), campus Leste. "Por mais críticos e conscientes que jovens e adultos sejam em relação à moralidade, ninguém escapa de oscilar entre a moral heterônoma e autônoma em seus atos."
A afetividade tem relação direta com a construção de valores e com a forma de agir frente a dilemas morais.


"No futuro eu quero ser desembargador. Gostaria de mudar as leis. A gente vê um monte de injustiças. Por exemplo, quando tem um arrastão e os ladrões não são pegos, enquanto uma pessoa que rouba um pão, porque tem fome, acaba ficando muito tempo na cadeia."  Lucas, 12 anos
Reprodução/Agradecimento Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo (USP)
De fato, distinguir o certo do errado não implica necessariamente em agir conforme seu juízo. Afinal, não há criança nem adulto que paute todos os seus atos por convicções morais (veja abaixo a justificativa de Guilherme, 16 anos, para uma possível mentira). Como entender então essa discrepância entre pensar e agir? "Não basta saber discernir e compreender as razões implicadas em determinada ética ou moral", pondera a psicóloga Vanessa Lima, docente da Universidade Federal de Rondônia (Unir). "Para ter ações morais, é preciso ser movido por uma vontade e um desejo morais que guiem aquela conduta." Outro aspecto que influencia uma ação moral, segundo Vanessa, é a representação que a criança ou o jovem têm de si próprio. "Se um adolescente, por exemplo, considera central a questão da honestidade em sua personalidade, ele provavelmente se guiará mais por esse valor do que por outros tidos como periféricos na visão que tem de si mesmo", explica (confira acima o desenho e a fala de Lucas, 12 anos).
"Se é uma coisa que eu quero muito fazer e que eu julgo não ser algo errado, não vejo tanto problema em mentir (para pais ou professores). É uma reação a uma regra imposta e com a qual eu não concordo."  Guilherme, 16 anos
Todos esses aspectos apontam para um longo processo de construção da moralidade, que começa na infância, se intensifica na adolescência e continua pela vida toda. Dessa forma, deve ser deixada de lado a ideia de que uma criança ou um jovem têm boa ou má índole. "O ser humano é complexo, e reduzi-lo ao inatismo é desconsiderar suas potencialidades", diz Vanessa. "Se fosse assim, teríamos apenas que fazer julgamentos precoces dos indivíduos que têm potencial para dar certo e errado." Crianças e jovens sempre poderão se aproximar dos princípios éticos. Basta que tenham suas convicções suficientemente postas em xeque.
Para construir a moral autônoma, o adolescente precisa de situações que desafiem seu modo de pensar.
* Os desenhos e os diálogos publicados nesta reportagem são de crianças da 5ª série do ensino fundamental e do 2º ano do ensino médio da Escola de Aplicação e de turmas de 5 e 6 anos da Creche Central da Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP

Consultoria de Maria Thereza Costa Coelho de Souza, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

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CONTATOS
Nelson Pedro-Silva
Ulisses Araújo
Vanessa Lima

BIBLIOGRAFIA
Educação e Valores: Pontos e Contrapontos, Valéria Amorim Arantes, Ulisses Araújo e Joseph Puig, 168 págs., Ed. Summus, tel. (11) 3872-3322, 38 reais
Ética e Moral na Educação, Roque A. Neto e Margarete M. Rosito, 132 págs., Ed. Wak, tel. (21) 3208-6095, 19 reais
O Juízo Moral na Criança, Jean Piaget, 304 págs., Ed. Summus, tel. (11) 3872-3322, 60 reais
Moral e Ética - Dimensões Intelectuais e Afetivas, Yves de La Taille, 192 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 36 reais  

O desenho e o desenvolvimento das crianças

Os rabiscos ganham complexidade conforme os pequenos crescem e, ao mesmo tempo, impulsionam seu desenvolvimento cognitivo e expressivo

No início, o que se vê é um emaranhado de linhas, traços leves, pontos e círculos, que, muitas vezes, se sobrepõem em várias demãos. Poucos anos depois, já se verifica uma cena complexa, com edifícios e figuras humanas detalhados. O desenho acompanha o desenvolvimento dos pequenos como uma espécie de radiografia. Nele, vê-se como se relacionam com a realidade e com os elementos de sua cultura e como traduzem essa percepção graficamente. 

Toda criança desenha. Pode ser com lápis e papel ou com caco de tijolo na parede. Agir com um riscador sobre um suporte é algo que ela aprende por imitação - ao ver os adultos escrevendo ou os irmãos desenhando, por exemplo. "Com a exploração de movimentos em papéis variados, ela adquire coordenação para desenhar", explica Mirian Celeste Martins, especialista no ensino de arte e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. A primeira relação da meninada com o desenho se dá, de fato, pelo movimento: o prazer de produzir um traço sobre o papel faz agir. 

Os rabiscos realizados pelos menores, denominados garatujas, tiveram o sentido ampliado sob o olhar da pesquisadora norte-americana Rhoda Kellogg, que observou regularidades nessas produções abstratas (veja no topo da página o desenho de Joana, 3 anos, e sua explicação).Observando cerca de 300 mil produções, ela analisou principalmente a forma dos traçados (rabiscos básicos) e a maneira de ocupar o espaço do papel (modelos de implantação) até a entrada da criança no desenho figurativo, o que ocorre por volta dos 4 anos. 

No período de produção de garatujas, ocorre uma importante exploração de suportes e instrumentos. A criança experimenta, por exemplo, desenhar nas paredes ou no chão e se interessa pelo efeito de diferentes materiais e formas de manipulá-los, como pressionar o marcador com força e fazer pontinhos. Essa atitude de experimentação tem valor indiscutível na opinião de Rhoda: "Para ela 'ver é crer' e o desenho se desenvolve com base nas observações que a criança realiza sobre sua própria ação gráfica", ressalta Rosa Iavelberg, especialista em desenho e docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), no livro O Desenho Cultivado da Criança: Práticas e Formação de Educadores. Esse aprendizado durante a ação é frisado pela artista plástica e estudiosa Edith Derdyk: "O desenho se torna mais expressivo quando existe uma conjunção afinada entre mão, gesto e instrumento, de maneira que, ao desenhar, o pensamento se faz".
De início, a criança desenha pelo prazer de riscar sobre o papel e pesquisa formas de ocupar a folha.
Com o tempo, a criança busca registrar as coisas do mundo

Uma das principais funções do desenho no desenvolvimento infantil é a possibilidade que oferece de representação da realidade. Trazer os objetos vistos no mundo para o papel é uma forma de lidar com os elementos do dia a dia. "Quando a criança veste uma roupa da mãe, admite-se que ela esteja procurando entender o papel da mulher", explica Maria Lúcia Batezat, especialista em Artes Visuais da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc). "No desenho, ocorre a mesma coisa. A diferença é que ela não usa o corpo, mas a visualidade e a motricidade." Esse processo caracteriza o desenhar como um jogo simbólico (veja abaixo o comentário de Yolanda, 5 anos, sobre seu desenho).
"Esse aqui não é um coelho. Não me diga que é um coelho porque é um boi bebê. Eu estou fazendo uma galinha que foi botar ovo no mato. Quer dizer, uma menina que foi pegar plantas no mato para dar ao marido." Yolanda, 5 anos
Muitos autores se debruçaram sobre as produções gráficas infantis, analisando e organizando-as em fases ou momentos conceituais. Embora trabalhem com concepções diferentes e tenham chegado a classificações diversas, é possível estabelecer pontos em comum entre as evolutivas que estabelecem. Pesquisadores como Georges-Henri Luquet (1876-1965), Viktor Lowenfeld (1903-1960) e Florence de Mèridieu oferecem elementos para a compreensão dos desenhos figurativos das crianças, destacando algumas regularidades nas representações dos objetos.
Desenhar é uma forma de a criança lidar com a realidade que a cerca, representando situações que lhe interessam.
Mais cedo ou mais tarde, todos os pequenos se interessam em registrar no papel algo que seja reconhecido pelos outros. No começo, é comum observar o que se convencionou chamar de boneco girino, uma primeira figura humana constituída por um círculo de onde sai um traço representando o tronco, dois riscos para os braços e outros dois para as pernas. Depois, essa figura incorpora cada vez mais detalhes, conforme a criança refine seu esquema corporal e ganhe repertório imagético ao ver desenhos de sua cultura e dos próprios colegas.
Uma das primeiras pesquisas dos pequenos, assim que entram na figuração, é a relação topológica entre os objetos, como a proximidade e a distância entre eles, a continuidade e a descontinuidade e assim por diante. Em seguida, eles se interessam em registrar tudo o que sabem sobre o modelo ao qual se referem no desenho, e é possível verificar o uso de recursos como a transparência (o bebê visível dentro da barriga mãe, por exemplo) e o rebatimento (a figura vista, ao mesmo tempo, por mais de um ponto de vista). Assim, a criança se aproxima das noções iniciais de perspectiva e escala, estruturando o desenho em uma cena, sem misturar na mesma produção elementos de diferentes contextos (veja abaixo a produção de Anita, 5 anos, que detém essas características).
"Vou desenhar a minha casa. Aqui é o portão e tem uma janela aqui." Anita, 5 anos 
"Dá para ver a sua mãe dentro de casa?"
 Repórter
"Não, porque a porta parece um espelho. Só daria se a janela estivesse aberta." Anita
O desenho é espontâneo ou é fruto da cultura?

Entre os principais estudiosos, há uma cizânia. Há os que defendem que o desenho é espontâneo e o contato com a cultura visual empobrece as produções, até que a criança se convence de que não sabe desenhar e para de fazê-lo. E há aqueles que depositam justamente no seu repertório visual o desenvolvimento do desenho. Nas discussões atuais, domina a segunda posição. "A única coisa que sabemos ser universal no desenho infantil é a garatuja. Todo o resto depende do contexto cultural", diz Rosa Iavelberg.
Detalhes da figura humana, noções de perspectiva e realismo visual são elementos da evolução do desenho.

Essa perspectiva não admite o empobrecimento do desenho infantil, mas entende que a criança reconhece a forma de representar graficamente sua cultura e deseja aprendê-la. Assim, cai por terra o mito de que ela se afasta dessa prática quando se alfabetiza. "O desenho é uma forma de linguagem que tem seus próprios códigos", diz Mirian Celeste Martins. "Para se aproximar do que ele expressa, é preciso fazer uma escuta atenta enquanto ele é produzido." Para Mirian, a relação entre a aquisição da escrita e a diminuição do desenho ocorre porque a escola dá pouco espaço a este quando a criança se alfabetiza - algo a ser repensado em defesa de nossos desenhistas.

* Os desenhos e os diálogos publicados nesta reportagem são de crianças de 3 a 5 anos da Creche Central da Universidade de São Paulo (USP)
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CONTATOS
Edith Derdyk
Maria Lúcia Batezat
Mirian Celeste Martins
Rosa Iavelberg

BIBLIOGRAFIA 
O Desenho Cultivado da Criança: Práticas e Formação de Educadores, Rosa Iavelberg, 112 págs., Ed. Zouk, tel. (51) 3024-7554, 23 reais
Tratado de Psicologia Experimental, vol. 8, Paul Fraisse e Jean Piaget, 313 págs., Ed. Forense, tel. (11) 4062-5152 (edição esgotada)

O despertar da sexualidade

Desde o nascimento, a criança explora o prazer, os contatos afetivos e as relações de gênero. Saiba como responder às dúvidas infantis sobre o tema

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"A gente tá de mãos dadas, passeando com o cachorro. Eu e o Luís." Ana Beatriz, 4 anos
Apreciar a textura de um sorvete, relaxar numa massagem, desfrutar o beijo da pessoa amada: tudo o que se relaciona ao prazer com o corpo está ligado à sexualidade. Embora pelo senso comum ela se confunda com o erotismo, a genitalidade e as relações sexuais, o fato é que esse campo do desenvolvimento humano pode ser entendido num sentido mais amplo e deve incluir a conscientização sobre o próprio corpo e a forma de se relacionar amorosamente.

Ainda que esse processo se estenda pelo resto da vida, ele se inicia na infância, desde o nascimento. "As crianças sentem prazer em explorar o corpo, em serem tocadas, acariciadas. Elas experimentam a si próprias e ao entorno, vivenciam limites e possibilidades", diz Cláudia Ribeiro, professora da Universidade Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais.

De modo geral, é possível falar em três "frentes de descobrimento", que ocorrem paralelamente: a da dinâmica das relações afetivas, a do prazer com o corpo e a da identificação com o gênero. Tudo se inicia com a primeira percepção de prazer: o ato de mamar, uma ação que dá alívio ao desconforto da fome e que intensifica o vínculo afetivo, baseado na sensação de cuidado e acolhimento. "A ligação entre mãe e bebê é um embrião relacional que, mais adiante, será desafiado com a percepção de que a figura materna desvia sua atenção para outras pessoas, como o pai ou um irmão", explica Ada Morgenstern, psicanalista e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

Ao constatar que não é o centro das atenções, a criança sente certo abalo em seu "reinado", mas também percebe que a sensação boa de se relacionar pode ser estendida para além da figura da mãe. Inicialmente, ela se volta para outros membros do contexto familiar e, em seguida, depois do primeiro ano de vida, para fora dele. "Essas relações dão uma referência à criança sobre sua própria identidade. Interagindo com amigos, ela percebe a si mesma", diz Maria Helena Vilela, educadora sexual e diretora do Instituto Kaplan, em São Paulo.

Para compreender as relações entre casais, os pequenos criam representações com faz de conta e imitação.
O prazer do vínculo afetivo e das interações sociais se dá em paralelo com a percepção das relações amorosas entre casais. Para compreender essa realidade do mundo, a criança se utiliza de recursos próprios da fase que vive: o faz de conta e a imitação. Falas como a de Ana Beatriz(primeira imagem), que representa no desenho um passeio de mãos dadas com um colega - ou seja, uma situação típica de namoro -, demonstram o interesse sobre os relacionamentos.

Experiências e perguntas nas investigações sobre o prazer

A descoberta de que o corpo é uma importante fonte de prazer costuma vir acompanhada de perguntas sobre a sexualidade. É comum, por exemplo, uma criança pequena perguntar a uma visita se ela tem "pinto" ou "perereca" - causando certo constrangimento aos adultos. A questão explicita que ela começa a identificar as diferenças entre o corpo do homem e o da mulher e toma consciência das características do próprio físico. Nesse contexto, além da investigação visual, experimenta as sensações causadas pelo toque em diferentes partes do corpo (e no de outras crianças), sejam elas do mesmo sexo ou do sexo oposto. "Também fazem parte dessa vivência beijos e abraços entremeados por risos e cócegas", completa Cláudia.
"O neném primeiro fica na barriga. Depois, sai pela perereca."
Maria Luísa, 5 anos
Um dos pioneiros a estudar a exploração do prazer corporal foi o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise, que chocou a sociedade de sua época ao falar da sexualidade infantil - rompendo com a imagem da criança inocente, assexuada. Ele mapeou o desenvolvimento nesse campo em diferentes fases, cada uma valorizando o prazer em uma região do corpo. A primeira delas é a fase oral, que se estende até os 2 anos e em que os pequenos concentram na boca a maior parte das sensações de prazer - mamar no seio ou na mamadeira, chupar chupeta etc. Em seguida, passa-se à fase anal (em torno dos 3 e 4 anos), quando a criança ganha controle sobre os esfíncteres e passa pelo processo de largar as fraldas. Nesse momento, sente-se bem em eliminar ou reter urina e fezes, fazendo do ânus uma região de prazer.

Depois os pequenos descobrem o prazer genital e investem nessa exploração do próprio órgão sexual. Esse período ocorre entre os 3 e os 5 anos e, depois dele, instaura-se um período de latência, em que as questões da sexualidade ficam secundárias nas inquietações infantis (até a puberdade). Embora não tenha sido superada, essa divisão em etapas é hoje relativizada pelos especialistas. "A separação por fases tem a intenção de facilitar a compreensão sobre o amadurecimento da sexualidade e não pode ser entendida como algo estanque, que ocorre linearmente", explica Ada.

As dúvidas sobre a concepção são frequentes e devem ser respondidas com precisão.
É também durante a Educação Infantil que os pequenos começam a se colocar questões sobre a origem dos bebês. Os caminhos para resolver esse "mistério" costumam ser perguntar a um adulto ou elaborar teorias próprias com as informações que coletam das mais variadas fontes - conversas, filmes e livros, por exemplo. A fala de Luís Antônio, que parece se contentar com a ideia de que os bebês vêm do hospital, é um exemplo disso (veja o diálogo abaixo).

"A minha mãe tá perguntando para o meu pai se ela pode me dar um irmãozinho. Se ele deixar, vai nascer." Luís Antônio, 4 anos
"E de onde ele vai vir?" repórter 
"Do (hospital) Samaritano." Luís Antônio


"Nessa hora, o importante é responder exatamente o que a criança está perguntando, sem antecipar dúvidas", diz Marcos Ribeiro, sexólogo e coordenador geral da ONG Centro de Educação Sexual, no Rio de Janeiro. Se uma criança indaga como os bebês nascem, dizer que eles saem do hospital, embora não seja errado, não resolve a dúvida, pois poderia indicar que eles são comprados ou pegos no local. Uma possibilidade é dizer que eles vêm da barriga da mãe, sem dizer como ele entra ou sai dela (a menos que o pequeno pergunte). "Assim, é possível garantir que eles tenham acesso à informação à medida que as questões façam sentido para eles ou os inquietem", diz Ribeiro.

No espaço escolar, fale sobre o que é público e o que é privado
"Aqui é um homem porque ele é forte. Olha o muque dele."
Felipe, 4 anos
Além de explicações sobre anatomia e concepção, os pequenos vão aos poucos construindo ideias sobre cada gênero. Por volta dos 2 anos, a criança percebe se é do sexo feminino ou masculino e, no contato com os adultos ao seu redor e pela mídia, aprende o que é ser menino ou menina em sua sociedade - e, claro, tem contato com os rótulos associados a eles. Os pequenos logo percebem que se espera que o homem seja forte (veja o desenho e a fala de Felipe ao lado) e que a mulher seja frágil e delicada (veja a fala de Sofia abaixo).

"O meu pai às vezes me chama de Sofião...Eu não gosto dele quando faz isso comigo." Sofia, 5 anos

"É preciso ter atenção à rigidez dessa diferenciação e à criação de estereótipos que não contemplem a diversidade entre as pessoas", alerta Ribeiro. Nesse aspecto, a escola tem um papel importante. A maneira como a instituição lida com as diferenças físicas e a igualdade de oportunidades são maneiras de ensinar o respeito à diversidade e de não reafirmar clichês questionáveis - como o fato de a menina ser passiva, e o menino, destemido ou mesmo autoritário.

Da mesma forma, a equipe docente tem responsabilidade em explicitar as regras da cultura em que os pequenos estão inseridos. É preciso ter atenção, sobretudo, à distinção do que cabe no espaço público e no privado. A masturbação, por exemplo, requer um espaço privado para ser realizada, assim como urinar e defecar. "O professor deve intervir ao ver um menino manipulando a genitália em local público, mas o foco não deve ser a ação em si. A questão é o local apropriado", diz Maria Helena. "O adulto não deve repreender a criança apenas porque ele mesmo está incomodado. Se ela estiver se tocando em local privado, como a cabine de um banheiro, não é adequado pedir para parar."

Construída no início da vida, a identificação com o gênero se vincula à cultura em que cada criança se insere.
O desafio para o professor é enorme: ao mesmo tempo em que deve preservar a intimidade das crianças e não culpabilizá-las por manifestações de sexualidade, ele é responsável por um processo educativo que aborde valores, diferenças individuais e grupais, de costumes e de crenças. Isso é fundamental tan-to na infância como na adolescência, quando a questão ressurge a todo vapor. O mesmo te-ma voltará a ser abordado na série Desenvolvimento Infantil e Juvenil - que, a partir do mês que vem, direciona o olhar para o comportamento dos jovens.

* Os desenhos e os diálogos publicados nesta reportagem são de crianças de 3 a 5 anos da Creche Central da Universidade de São Paulo (USP)
Quer saber mais?
CONTATOS 
Ada Morgenstern
Cláudia Ribeiro
Marcos Ribeiro
Maria Helena Vilela

BIBLIOGRAFIA 
Freud e a Educação - O Mestre do Impossível, Maria Cristina Kupfer, 102 págs., Ed. Scipione, tel. 0800-161-700, 30 reais
Sexualidades e Infância - A Sexualidade Como um Tema Transversal, Cláudia Ribeiro e Ana Maria Faccioli de Carvalho, 144 págs., Ed. Unicamp, tel. (19) 3521-7030, 31 reais 







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